
“Na escola, me desenhavam como se eu fosse um gorila, por causa dos meus pelos. Tinha esperança de ser diferente na faculdade. Mas a experiência acadêmica foi a faísca que faltava para que eu desenvolvesse depressão e tentasse me matar aos 20 e poucos anos.”
O relato acima é de Janaína*, de 34 anos, vítima de bullying em 2009, quando estudava história na Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Ela conta que:
Histórias como essa costumam ser associadas a adolescentes em ambiente escolar, certo? Mas elas acontecem também entre adultos que, em tese (e só em tese), teriam mais maturidade nas relações sociais. São episódios de humilhação e intimidação que provocam traumas emocionais e aumentam o risco de a vítima abandonar os estudos.
Na última sexta-feira (10), um vídeo que viralizou nas redes sociais mostrou Patrícia Linares, de 44 anos, sendo hostilizada por seus colegas do curso de biomedicina, na universidade particular Unisagrado, em Bauru (SP). “Gente, [ela tem] 40 anos, não pode mais fazer faculdade”, debochou uma das alunas (assista ao vídeo abaixo).
Segundo Telma Vinha, doutora em educação e especialista em conflitos interpessoais na Unicamp (SP), “as pessoas só ‘cresceram’, mas não aprenderam, quando estavam na escola, a resolver seus conflitos com diálogo”.
“Chegam ao ensino superior e convivem com mais diferenças, em um ambiente com relações de poder que elevam a tensão”, explica.
Em geral, dizem especialistas ouvidos pelo g1, as faculdades brasileiras não estão preparadas para lidar com esse tipo de conflito, por mais frequente que ele seja.
“Elas usam ferramentas velhas, balizadas apenas na punição [do agressor]. Só isso não resolve. Todos os envolvidos vão continuar ali, convivendo nas salas de aula e no restaurante universitário. É preciso recompor as relações interpessoais”, afirma Antonio Freitas Júnior, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Veja abaixo:
De acordo com Telma Vinha, para um caso ser classificado como bullying, deve se encaixar nos seguintes critérios:
Freitas Júnior conta que existem tanto casos com recortes sociais (contra pessoas de determinada idade, gênero, raça ou orientação sexual) como aqueles sem um enfoque específico.
Há, ainda, uma sazonalidade na prática do bullying, explica o docente.
“As manifestações de violência são mais frequentes no início do semestre, nos rituais de recepção aos calouros”, afirma. “As universidades precisam ter consciência de que não podem testemunhar isso de maneira passiva.”
Janaína, citada no início da reportagem, afirma que procurou a Furg para receber apoio psicológico e denunciar a violência que sofria – mas não recebeu o apoio que esperava. “Minha professora me levou para a assistência estudantil, e tive uma consulta com o psicólogo da faculdade. Foi uma só. Depois, disseram que não tinha mais horário”, afirma.
“O maior problema do bullying é o desinteresse institucional. Sempre foi, sempre vai ser. Existem situações que só acontecem porque a instituição permite.”
O g1 entrou em contato com a Furg, mas não havia recebido um posicionamento até a última atualização desta reportagem.
No caso de Patrícia, discriminada por ter mais de 40 anos, a Unisagrado disse que está tomando medidas em relação às universitárias envolvidas no caso, mas não quis divulgar quais.
Telma Vinha reforça que a postura das universidades colabora para a perpetuação dos conflitos. Segundo ela, faltam espaços de escuta e funcionários com a formação adequada para lidar com o bullying.
Em geral, o processo é “burocrático”: é preciso relatar para a coordenação, que passa para a direção, que talvez direcione a alguma comissão… No fim das contas, há, no máximo, uma punição para o agressor.
Aos poucos, a prática da violência vai se naturalizando, e as vítimas desistem de pedir ajuda.
Maria*, por exemplo, foi humilhada por uma colega quando estudava em uma universidade pública do Ceará.
“Uma colega fazia chacota com minhas roupas, ria do meu cabelo, zombava da forma que eu me maquiava e fazia tudo isso em voz alta, para puxar coro com as risadinhas”, diz.
“Não busquei ajuda, porque eu nem entendia como bullying na época, pra falar a verdade. Eu achava só que era uma criatura implicante, que gostava de humilhar quem era pobre. E a universidade tem aquele jeitão de ‘te vira’, porque acha que adultos conseguem se resolver sozinhos.”
Ela só não desistiu do curso porque “estar na universidade era motivo de orgulho para a família”.
“Foi uma decepção viver isso no ensino superior. Na minha cabeça, esse tipo de comportamento era coisa de filme adolescente norte-americano.”
É importante que as instituições de ensino estabeleçam:
Aos poucos, segundo os especialistas ouvidos pelo g1, as faculdades brasileiras tentam chegar a instrumentos mais efetivos para lidar com esse tipo de conflito.
A Unicamp, por exemplo, colocou em prática em 2021 as “câmaras de mediação”, para lidar com os conflitos interpessoais na universidade (tanto casos de bullying como de assédio, por exemplo).
Todo o processo é voluntário: a vítima procura a câmara e relata seu sofrimento. Depois, quem praticou a violência é convidado a conversar com os especialistas (que receberam formação específica para a mediação). Por fim, são organizados encontros com todos os envolvidos juntos.
“O objetivo é restaurar as relações. É uma mudança de cultura: tentamos transformar a situação”, explica Maria Augusta Ramalho, coordenadora da câmara da Unicamp.
É importante entender que o processo de mediação não exclui a possibilidade de punir o agressor – são instâncias diferentes.
“Nossa parte é focada no diálogo, pensando que todos vão continuar convivendo por anos. Não basta seguir a cultura ‘do litígio’, de só brigar.”